Agnaldo Costa Sociedade de Advogados
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03 de Setembro de 2018

Os Direitos dos Motoristas por Aplicativo

Com o surgimento e consolidação dos aplicativos do transporte, houve evidente benefício à população, mas a sociedade há de enxergar as consequências que estão por trás do discurso bem ensaiado das empresas de tecnologia que regem essa nova revolução.

I – Introdução

É inegável o fato de que o pulsante desenvolvimento tecnológico vem alterando o contexto social e a vida de toda a população a nível global. Seja na saúde, na educação, na economia e no transporte, as novas tecnologias estão mudando comportamentos, hábitos, costumes, fazendo com que novos motes surjam nas pautas dos estudiosos para entender os efeitos de tantas inovações sociais.

As relações jurídicas não escapam deste mesmo destino. O uso da tecnologia está mudando as relações de trabalho e as formas de contratação, levando os juristas a se debruçarem nas mesas de estudo no sentido de inovar no entendimento jurídico para poder acompanhar a transformação social, ao passo que a atividade legislativa, com sua vagueza e morosidade, não é capaz de acompanhar o dinamismo da inovação tecnológica.

A inovação tecnológica é necessária (além de ser obviamente inevitável) e digna de aplausos. Não obstante, não se pode deixar com que as novas tecnologias assumam completamente o controle das relações sociais e ignorem os princípios constitucionais que as regem.

Com o surgimento e consolidação dos aplicativos do transporte, houve evidente benefício à população, mas a sociedade há de enxergar as consequências que estão por trás do discurso bem ensaiado das empresas de tecnologia que regem essa nova revolução.

Tratamos nesse ensaio de uma das inúmeras novas relações jurídicas oriundas da inovação tecnológica do século XXI, que é o vínculo entre empresas de tecnologia de transporte por aplicativo e os motoristas que a elas prestam serviço.

II – Delimitação do tema

O terreno que estamos nos dispondo a explorar é completamente novo, tanto isso é verdade que ainda é escassa a doutrina sobre direitos que envolvem aspectos tecnológicos. Não há, outrossim, pacífico entendimento jurisprudencial sobre tais matérias.

No caso, a discussão ficará restrita à relação jurídica entre empresas de tecnologia e os motoristas que prestam serviço a tais empresas, tendo foco nos direitos dos motoristas. Nossa motivação está calcada na divergência jurisprudencial sobre o tema.

As correntes de entendimentos são diversas; parte dos juristas entendem que a relação entre empresa (nos referimos a empresas de tecnologia – ex. Uber e etc.) é de trabalho[1], culminando no pleito judicial de reconhecimento da relação empregatícia e, consequentemente, demanda pelo pagamento dos reflexos trabalhistas; outros advogam no sentido de que o contrato entre empresa e motorista é puramente cível, ou seja, um contrato de prestação de serviços.

Essa indeterminação na natureza contratual gera consequências, mormente por caracterizar evidente insegurança jurídica – isso para a empresa, para o motorista e, também, para o usuário/consumidor do serviço.

A fim de não alongar a discussão e tendo consciência de que a discussão da matéria trabalhista escapa da nossa expertise, restringimos esse breve artigo à discussão das consequências jurídicas do contrato entre empresa e motorista, tendo como pressuposto se tratar de um contrato de natureza cível.

III – Do contrato entre empresa e motorista

Normalmente, o motorista se vincula à plataforma das empresas de tecnologia a partir de um contrato digital de adesão, no qual são delimitados os requisitos para que o motorista atue pela empresa, os seus direitos e os deveres defronte à empresa. Além disso, no mesmo contrato estão definidas as políticas da empresa, que devem ser acatadas à risca.

Diante disso, o motorista deve se adequar aos requisitos exigidos pela empresa para dar início à prestação de serviços. Eventualmente, o motorista deve adquirir um veículo adequado, um celular especifico, um seguro e um plano de celular que permita ficar vinculado ao aplicativo da empresa ao longo do dia de trabalho. A partir daí o motorista pode iniciar a prestação de serviços. Forçoso destacar que o investimento para tal prestação de serviços é vultoso.

O contrato de adesão não permite discussão prévia entre as partes, o que nos leva à primeira consideração importante: nos termos do art. 423 do Código Civil entoa-se que: “Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. Ou seja, em eventual discussão judicial entre empresa e motorista, há, a priori, vantagem interpretativa do contrato em favor do motorista, isso se deve ao fato já relatado de se tratar de um contrato de adesão e, também, pelo desequilíbrio econômico e técnico entre as partes.

O artigo de Lei supramencionado dá azo ao judiciário para obstar comportamentos oportunistas para a parte economicamente mais forte e melhor informada.

Outro ponto que merece atenção importa na imposição de penalidades abusivas a eventual inadimplemento contratual por parte do motorista. O art. 413 do Código Civil dispõe que pode haver revisão da penalidade se verificado manifesto excesso da parte. Nesse particular, o termo de adesão oferecido aos motoristas pelas empresas de tecnologia pode ser amplamente discutido judicialmente caso haja conflito entre os contratantes.

No que diz respeito à rescisão do contrato, a maior parte das empresas de tecnologia dispõe que pode ser realizado a qualquer tempo. Isso é passível de gerar graves consequências aos motoristas que adentraram à plataforma da empresa e permanecerem por pouco tempo, pois – rememora-se – investimentos[2]são necessários para se atuar em tal ramo. A solução é dada pelo art. 473, parágrafo único, do Código Civil: “Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos”.

Nota-se que o mencionado artigo normativo visa impedir atitudes abusivas do agente econômico mais capacitado, impedindo-o de resilir o contrato precipitadamente. Os motoristas por aplicativo podem fazer uso do disposto no art. 473 do Código Civil para se manterem conectados à plataforma da empresa de tecnologia até que o motorista possa compensar os investimentos realizados.

Sem embargo, pode-se afirmar que a resilição precipitada é uma violação ao princípio da confiança[3], que foi depositada pelo motorista na empresa de aplicativos. Se não houve qualquer violação ao contrato por parte do motorista, a resilição unilateral precoce é injustificada, pois torna o contrato excessivamente oneroso ao motorista – isto é, contrário à possibilidade de se auferir lucro – que é o principal objeto de contratos dessa natureza.

Caso não seja possível a manutenção do contrato entre as partes, por quaisquer circunstâncias que possam aflorar no decurso da relação contratual, a rescisão antecipada do contrato pela empresa de tecnologia deve ser passível de gerar indenização ao motorista, condizente com os investimentos realizados e com os lucros que eventualmente viesse a auferir em determinado período. Ou seja, o que “razoavelmente deixou de lucrar”[4].

IV – Conclusão

O advento das novas tecnologias está provocando mudanças sociais e, com elas, imprescindível que os operadores do direito entrem em ação. O direito não pode ficar alheio às alterações sociais e aos abusos que eventualmente venham a surgir.

Ao nosso ver, os motoristas por aplicativo estão inaugurando uma nova relação jurídica, que ainda sem previsão legal, depende da atividade interpretativa dos advogados e juízes a fim de manter os princípios norteadores da Constituição Federal (leia-se: dignidade da pessoa humana e direito ao trabalho).

Concluímos que apesar de geralmente haver um contrato entre empresa de tecnologia e motoristas, estes se situam em posição de desvantagem e não contam com legislação específica para resguardar os seus direitos. Cabe ao operador do direito, em socorro aos motoristas, se debruçar no estudo dos dispositivos legais já existentes, apelando à melhor interpretação vinculada aos princípios gerais do direito.

Tal intensiva atividade interpretativa se faz necessária por corolário da recente insegurança jurídica sobre o tema, tendo em vista que não se reconhece a relação entre empresa de tecnologia e motorista como empregatícia.

Caso constatada a violação contratual, o motorista deve invocar os dispositivos de Lei supramencionados e o judiciário não pode se negar se pronunciar sobre eles. Afinal, diz o art. 3º do Código de Processo Civil que: “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”.

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[1]Vide processo trabalhista nº 1000123-89.2017.5.02.0038, no qual ouve o reconhecimento da relação de trabalho entre a empresa Uber e um dos seus motoristas. No voto da relatora da 15ª Turma, no recurso no TRT 2ª região, destacou-se: "Se se tratasse de mera ferramenta eletrônica, por certo as demandadas não sugeririam o preço do serviço de transporte a ser prestado e sobre o valor sugerido estabeleceriam o percentual a si destinado. Também não condicionariam a permanência do motorista às avaliações feitas pelos usuários do serviço de transporte. Simplesmente colocariam a plataforma tecnológica à disposição dos interessados, sem qualquer interferência no resultado do transporte fornecido, e pelo serviço tecnológico oferecido estabeleceriam um preço/valor fixo a ser pago pelo motorista pelo tempo de utilização, por exemplo."

[2]PAULA FORGIONI chama de custos ou investimentos idiossincráticos. FORGIONI leciona: “Custos idiossincráticos podem trazer o estado de dependência unilateral ou recíproca porque, regra geral, quanto maiores os investimentos específicos, mais elevadas as perdas decorrentes do aborto da operação. E ainda: quanto menor sua probabilidade de recuperação, maior o grau de dependência”. Por fim, a renomada autora, na mesma obra, defende: “A solução está na acurada observação do caso concreto para identificar o grau de dependência econômica existente entre as partes”.

[3]Ronnie, Preuss Duarte. Boa-fé, Abuso de Direito e o Novo Código Civil Brasileiro. In Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos. Organizadores: Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais – 2011.

[4]Art. 402, CC. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.

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